Entre Trump e memes, conclave decide futuro do legado de Francisco
JOSÉ HENRIQUE MARIANTE
BERLIM, ALEMANHA (FOLHAPRESS) – Foi em 236, tipo de número que precisa de um “depois de Cristo” para ser entendido como ano. Uma pomba pousou na cabeça de um padre, que se chamava Fabiano. A cena inusitada fez os cardeais acharem que aquilo era um evidente sinal do Espírito Santo. Fabiano foi unanimemente eleito papa e governou a Igreja e os católicos por 14 anos.
Ser escolhido por uma pomba branca pode soar aleatório, mas o que dizer de tempos em que o presidente dos EUA publica sua imagem como pontífice em redes sociais às vésperas do conclave? A partir da próxima quarta-feira (7), 133 cardeais se trancam, sem celular, para escolher o sucessor de Francisco, morto no último dia 21.
Entre Donald Trump, figura de proa do conservadorismo populista, memes de churrasco na Capela Sistina e a demanda de uma Igreja palatável às novas gerações, um Colégio Cardinalício renovado decidirá o que será feito do legado do primeiro papa sul-americano, o primeiro que veio “do fim do mundo”, como o próprio se colocou no início de seu pontificado.
O fim do mundo a que Jorge Bergoglio se referia era sua Argentina, o sul das Américas, o último ponto da exploração europeia. Uma releitura do Finisterra, de antes das caravelas, um dos pontos mais ocidentais da Europa, o fim e a razão do Caminho de Santiago de Compostela.
Superada a geografia, o fim do mundo se tornou existencial. Depois da ameaça nuclear da guerra fria e da crise do clima, seu agente atual é a inteligência artificial. Francisco, por sinal, foi o primeiro protagonista planetário de uma imagem fraudulenta criada por IA.
Seu momento fashion de casacão branco parecia real não só pela perfeição da imagem sintética, mas pelo histórico do papa, de atos inusitados e inéditos, ainda que para muitos insuficientes. Um deles foi entender que a Igreja Católica cresce para as periferias e que o próximo papa pode sair de outro fim de mundo, se os cardeais concordarem. Cerca de 80% do atual colégio foi nomeado por Francisco, a maioria vinda de fora da Europa.
Sua intenção, porém, não era fabricar um sucessor de algum local remoto, mas fazer o Vaticano espelhar a Igreja que existe, que está cada vez mais distante de uma Europa secular. A delicada costura política de Francisco, dentro do catolicismo e fora dele, sugere a continuidade de seu trabalho de renovação, tanto que o favorito para o conclave é seu secretário de Estado, Pietro Parolin.
O cardeal italiano, 70, cuida das relações internacionais do Vaticano desde o início do pontificado de Francisco, em 2013. Vai presidir o conclave por ser o cardeal-bispo de nomeação mais antiga e também pelos decanos do Colégio Cardinalício, Giovanni Battista Re, 91, e Leonardo Sandri, 81, terem superado a idade limite de 80 anos.
Vaticanistas dizem que Parolin teria uma vantagem natural no processo, pois determinará a dinâmica de debates e votações, em situação semelhante à do alemão Joseph Ratzinger, que conduziu os trabalhos e saiu da Capela Sistina como Bento 16 em 2005.
Seu principal trunfo, no entanto, seria o perfil ponderado, que lhe rendeu elogios em negociações difíceis com a China, por exemplo. Ajudará o próximo papa ser um diplomata para lidar com um presidente americano cercado de católicos conservadores, como o vice-presidente J. D. Vance, e anseios intervencionistas de toda ordem. A convivência de Trump, desde o primeiro mandato, com a Igreja sob Francisco foi pontuada por farpas e recados públicos, como o dado por Battista Re, na cerimônia do funeral, que lembrou as demandas do papa pelo fim de guerras e da intolerância com a imigração.
A escolha de Parolin, apesar de fazer sentido político, é tão incerta como a de outros favoritos nas casas de apostas e nos prognósticos dos estudiosos do assunto. Entre os mais citados estão Fridolin Ambongo, 65, arcebispo de Kinshasa, que se tornaria o primeiro papa negro, mas que teria o ineditismo concorrendo com seu perfil conservador; e o filipino Luis Antonio Tagle, 67, já chamado de “Francisco asiático”, de tendência liberal.
Da Europa, o húngaro Péter Erdo, 72, nomeado por João Paulo 2º aos 50 anos, outra aposta conservadora; e o sueco Anders Arborelius, 75, representante de um dos poucos países do continente que registra crescimento no número de católicos. Da Itália, além de Parolin, Matteo Zuppi, 69, arcebispo de Bolonha, midiático e mais à esquerda; e Pierbattista Pizzaballa, que chefia o Patriarcado Latino de Jerusalém e fez 60 anos no dia da morte de Bergoglio.
Nomeado por Francisco em 2023, Pizzaballa não aparece tanto nas casas de apostas, mas é bem cotado no universo da diplomacia. Há 30 anos no Oriente Médio, manteve igrejas de pé em Gaza, que serviram de escudo para muitos palestinos, inclusive brasileiros, durante os bombardeios de Israel. Segundo testemunhas, não apenas na base da negociação, mas também à custa de diálogos ríspidos com autoridades israelenses.
Qualquer que seja o escolhido, conservador ou reformista, seu parâmetro será Francisco, que, dentro de suas possibilidades ou de sua crença pastoral, fez a Igreja encarar suas muitas questões, como os escândalos financeiros do Vaticano, os casos de abuso sexual, o celibato, a ordenação de mulheres, o casamento homossexual e tantas outras.
Como discutido na congregação geral de cardeais deste sábado (3), de acordo com relato da assessoria de imprensa do Vaticano: “Surgiu a consciência do risco de a Igreja se tornar autorreferencial e perder sua relevância se não viver no mundo e com o mundo”.
Ou no fim do mundo, seja ele onde for.
Fonte: Noticias ao Minuto Read More