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Auschwitz cala políticos para celebrar 80 anos de sua liberação dos nazistas

BERLIM, ALEMANHA (FOLHAPRESS) – Em “Zona de Interesse”, filme de Jonathan Glazer de 2023, o cotidiano da família Höss na casa 88 é acompanhado de maneira crua. A ideia do diretor era não fetichizar as imagens, deixá-las limpas, sem que a estética induzisse a qualquer julgamento. A exceção era o que vinha de fora, um ruído fabril, às vezes monótono, às vezes destacado por algo mais agudo, como latidos de cães ou gritos.

 

O ruído vinha da instalação ao lado, Auschwitz, o campo de concentração nazista que matou 1,1 milhão de pessoas, a maioria judeus.

Há 80 anos, completos nesta segunda-feira (27), Auschwitz e Birkenau, na Polônia, foram liberados pelo Exército Vermelho nos estertores da Segunda Guerra Mundial. A Alemanha de Adolf Hitler capitularia meses mais tarde, e o mundo levaria um tempo para entender o que ocorria naquelas instalações.

Oito décadas depois, a tarefa de não deixar o extermínio e a brutalidade serem esquecidos ganha complexidade. Entre 50 e 60 sobreviventes falarão durante a cerimônia em memória desse período. Apenas eles. Autoridades e políticos presentes não terão voz. O mundo flerta com populismo, extrema direita e saudações nazistas. O ruído fabril agora vem das redes sociais.

“Devemos lembrar que apenas seis anos se passaram entre a ascensão de Hitler ao poder e a eclosão da Segunda Guerra, durante os quais o populismo e a propaganda nazistas floresceram. E, naquela época, não havia internet nem mídia social. Hoje, a manipulação da opinião pública é, infelizmente, muito mais fácil”, afirma à reportagem Piotr Cywiński, diretor do Museu de Auschwitz-Birkenau, responsável pela manutenção do que restou dos campos e por uma série de iniciativas de memória relacionadas ao Holocausto.

“O aspecto mais preocupante é que, mesmo agora, vemos tendências de desumanização de grupos sociais específicos aos olhos da maioria.”

A casa 88 existe. Rudolf Höss existiu, assim como sua família, retratada no filme. O comandante de Auschwitz foi preso por tropas britânicas em 1946. Seu depoimento no Tribunal de Nuremberg, sobre como os campos de concentração funcionavam, chocou o planeta. Em 1947, foi condenado e enforcado em Auschwitz.

No ano passado, uma organização americana dedicada a combater ideologias extremistas comprou a casa 88 de uma família polonesa. A residência será reaberta nesta segunda-feira como um centro de pesquisa dedicado a estudos sobre ódio, extremismo e radicalização. A Unesco, agência da ONU para a cultura, e o Museu de Auschwitz-Birkenau apoiam a empreitada, criticada por alguns ativistas.

“Em uma época em que o número de sobreviventes e testemunhas diretas do Holocausto é cada vez menor, é vital investir ainda mais em educação para transmitir a memória às gerações mais jovens, bem como combater as formas contemporâneas de antissemitismo”, diz Audrey Azoulay, diretora da Unesco.

Pesquisas atestam a necessidade de memória. Na França, 46% do público entre 18 e 29 anos diz não ter ouvido falar do Holocausto, mostra reportagem da Deusche Welle; metade dos alemães afirma não saber que 6 milhões de judeus foram mortos pelo regime nazista.

Os tempos atuais não ajudam. Na esteira do ataque terrorista do Hamas, que matou cerca de 1.200 pessoas em outubro de 2023, e da imediata reação de Israel, uma ofensiva militar que vive cessar-fogo, mas já consumiu 47 mil vidas em Gaza, explodiram em vários locais do planeta episódios de antissemitismo, assim como o debate em torno do assunto.

A Associação Judaica Europeia estima que 40 mil judeus tenham deixado a Europa na onda atual.

“Fazemos um esforço consciente para separar as posições políticas contemporâneas dos fatos históricos”, afirma Cywiński. “É claro que observamos com grande preocupação o aumento do antissemitismo em todo o mundo. Embora a crítica a decisões políticas seja sempre legítima, quando ela se transforma na generalização de julgamentos sobre nações inteiras, dá origem ao racismo e à xenofobia.”

Autor da decisão política que nublou ainda mais a discussão, Binyamin Netanyahu virou personagem em Auschwitz, mesmo sem ter a intenção de comparecer à cerimônia. Acusado de crimes de guerra em Gaza e com mandado de prisão expedido pelo Tribunal Penal Internacional, o primeiro-ministro de Israel deveria ser detido se fosse à Polônia.

A constatação fez o presidente do país, o populista Andrzej Duda, pedir um salvo-conduto para Netanyahu. Sua evidente intenção era constranger o primeiro-ministro, Donald Tusk, seu adversário político. Tusk, porém, evitou a armadilha e publicou uma resolução liberando a entrada. A Polônia é um dos tantos países europeus que se equilibra para não cair de novo no fosso autoritário, representado no caso por Duda.

Para Carlos Reiss, coordenador do Museu do Holocausto de Curitiba, a ascensão de projetos totalitários desencadeia “ciclos de intolerância”. “Eles existem por causa de crises econômicas e sociais e pela conjuntura internacional, que funciona como um efeito dominó.”

O enfraquecimento dos pilares democráticos, diz, “abre brechas perigosas para que os discursos de ódio ganhem legitimidade na esfera pública”. Lembrar Auschwitz é um imperativo neste momento. “Nunca foi tão importante falar sobre o Holocausto.”

Mais pessoas morreram em Auschwitz do que em qualquer outro campo de concentração nazista ou em qualquer outro local de extermínio na história. Foi lá que a “solução final”, o extermínio em massa de judeus, começou a ser posta em prática em 1942. Foi lá também que começou a ser utilizado o gás letal Zyklon B para acelerar o processo. Onde crianças judias foram usadas em experiências sádicas de Josef Mengele, médico e membro da SS, descoberto morto no Brasil quatro décadas mais tarde.

Em 27 de janeiro de 1945, os nazistas já haviam abandonado as instalações. Destruíram as câmeras de gás e parte das edificações. Forçaram ainda 60 mil prisioneiros a marcharem para oeste em busca de transporte para outros campos -15 mil não resistiram ou foram executados na travessia.

Quando chegaram a Auschwitz, soldados soviéticos se depararam com cerca de 7.000 sobreviventes famélicos, tão fracos que parte só conseguiu viver por mais alguns dias. A liberação também colheu evidências do genocídio, preservadas como encontradas até hoje pelo museu: duas toneladas de cabelo humano, 110 mil sapatos, 3.800 malas, 470 próteses, 40 quilos de óculos, 6.000 escovas de dentes, 12 mil potes, panelas e canecas esmaltadas.

Peças que daqui a dez anos talvez tenham que contar sozinhas o que era aquele ruído fabril que o planeta insiste em esquecer.

Fonte: Noticias ao Minuto Read More

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